sexta-feira, 11 de junho de 2010

Giovanni Boccaccio, pintor da peste negra

Giovanni Boccaccio, pintor da peste negra
 

Trata-se de uma Comunicação no X Encontro Regional da ABRALIC, 2005, Rio de Janeiro. Sentido dos Lugares. , 2005.


Na Introdução à 1a jornada do Decameron (1349-1353), o “autor” Giovanni Boccaccio (aqui como personagem) apresenta sua detalhada e expressiva descrição da peste negra, que no ano anterior (1348) atingiu a Europa inteira. A descrição da personagem Boccaccio é em primeira pessoa e o valida como testemunha altamente confiável desta tremenda catástrofe, reforçando assim uma moldura realista em texto de pura fição, que sanciona o nascimento da narrativa moderna. A representação fidedigna e plástica da peste aumenta evidentemente a autoridade de Boccaccio (como personagem, autor e narrador do texto) com vistas à discussão do monopólio da pintura sobre a literatura, e particularmente do prestígio do grande pintor Giotto (nas Conclusões do autore em novela da VI jornada).
Andrea Lombardi. UFRJ


A relação de Giovanni Boccaccio (1313-1375) com a questão da morte abre-se a pelo menos três temas de grande interesse, e um tema de menor interesse, que poderá ser rapidamente por nós descartado: trata-se da experiência, estritamente biográfica e direta, que o autor teve com a peste negra que assolou a cidade de Florença em 1348, um ano antes de ele iniciar a escrita do Decamerão, realizada entre 1349 e 1351) [1]. No entanto, ele não incluiu esse testemunho direto de sua vivência na obra, embora a tenha escrito imediatamente depois da peste. Seu próprio pai e muitos familiares faleceram em virtude da grande peste e certamente muitos outros amigos e outros familiares[2]. Na Introdução a I Jornada do Decamerão[3] mencionam-se cem mil mortos, só na cidade de Florença: “cem mil criaturas humanas acredita-se que dentro das muralhas de Florença morreram”; de fato, um exagero, que, porém, dá a dimensão do impacto psicológico de uma catástrofe de proporções enormes, virtualmente indescritíveis. Florença, uma das capitais da Europa da época, chegou a ter, antes da peste, aproximadamente cem mil cidadãos e a impressão posterior deve ter sido de uma devastação total. Sendo que Boccaccio vivenciou pessoalmente essa catástrofe de proporções inauditas[4], há indícios que levam a uma leitura do Decamerão através de reflexões realizadas no âmbito dos estudos da assim-chamada “literatura de testemunho”, conjunto de pesquisas ligadas ao relato de genocídios[5], Não se conhecem referências diretas à peste e à morte de familiares nos escritos de Boccaccio. Sendo assim, o elemento autobiográfico, testemunhal, é menos explícito e produtivo. Restam três aspectos de interesse para um exame da relação entre Boccaccio e a morte: Em primeiro lugar, deve-se salientar a existência de uma descrição da peste negra, na Introdução à I Jornada. Pode-se identificar uma relação intertextual entre a descrição boccacciana, a descrição feita pelo historiador grego Tucídides da peste em Atenas (retomada posteriormente por Lucrécio, em De rerum natura) e a descrição feita no séc. IV por Paolo Diacono, historiador da época dos langobardos.[6] A extrema plasticidade da descrição de Boccaccio tem o efeito de fortalecer sua autoridade de autor, enquanto desdobrado simultaneamente em autor, narrador e personagem que vivencia os eventos, na discussão sobre a hierarquia de valor entre as artes da pintura e da literatura, empreendida nas páginas finais do texto, nas quais trata-se do prestígio do grande pintor Giotto, seu contemporâneo.
Além dessa relação entre as artes, pode-se pensar nas ligações intertextuais existentes na obra de Boccaccio: a descrição da morte em massa em Florença pode ser relacionada ao verso que fecha dramaticamente o Canto V do Inferno de Dante Alighieri: “e caddi como corpo morto cade”. Essa ligação entre o episódio dantesco e o texto de Boccaccio é fundamentada pela evocação do canto dantesco no Decamerão, em duas citações do verso “Galeotto fu il libro e chi lo scrisse” [7]. No Decamerão, o verso dantesco é recordado no subtítulo do livro: “Começa o livro intitulado Decamerão, apelidado Príncipe Galeotto, em que estão contidas cem novelas, em dez dias recitadas por sete mulheres e três jovens.” [8] e também na última frase: “Aqui termina a décima e última jornada do livro intitulado Decamerão, apelidado Príncipe Galeotto.” [9], indicando na circularidade um gesto simultaneamente de homenagem e de disputa do escritor Boccaccio com seu precursor Dante. Cabe aqui notar que Boccaccio redigirá, em sua Vita de Dante e em outro escritos, textos em que sai em defesa da figura de Francesca; portanto, o episódio está bem presente em sua atuação literária. Este verso que descreve um desmaio de Dante (corpo morto que cai), um abandono do corpo, evoca, diretamente, a morte de Paolo e Francesca. Os dois amantes, condenados ao Inferno, são duplamente salvos por Dante: por não terem sido incluídos entre os traidores e por poder estar eternamente juntos (identificados, numa única voz). Entre o III[10] e o IV[11] canto, Dante recorreu à solução do desmaio, para que a personagem pudesse passar de um lugar ao outro. No Canto V, é pela paixão que Dante desmaia. Finalmente, um terceiro aspecto da relação entre a obra de Boccaccio e a morte pode ser examinado a partir de sua relação com o afresco O Triunfo da Morte, que se encontra no Cemitério Monumental de Pisa e cuja autoria foi recentemente atribuída a Buonamico Buffalmacco e datada como anterior a 1342, situando sua criação, portanto, poucos anos antes da peste negra e da redação do Decamerão. Este afresco inaugura uma tradição de releituras plásticas e literárias que inclui quadros (um dos mais famosos é o de Bruegel), textos de Petrarca a Gabriele D’Annunzio, no século XIX (este último escreverá um romance com o mesmo nome). Curiosamente, o afresco passa na crítica de objeto influenciado pelo Decamerão de Boccaccio (quando sua datação estava fixada ao final do séc. XIV) a fonte da influência do texto de Boccaccio.

I O Triunfo da morte, do pintor Buonamico Buffalmacco (contemporâneo de Boccaccio)

           
                     Afresco de Buonamico Buffalmacco no Cemetério de Pisa (provavelmente 1342)


O Decamerão contém quatro novelas dedicadas a pintores[12]. Em duas delas junto ao Calandrino, os protagonistas são Bruno e Buffalmacco, todos pintores. Em outra, aparece o protagonista é Giotto, o famoso pintor, sobre quem o texto afirma: “o sentido visual dos homens chegava a enganar-se, acreditando ser verdadeiro, o que por ele era pintado” [13]. Embora enaltecido por sua arte, nesta novella, Giotto é descrito fisicamente como uma das pessoas mais feias de sua época: “embora sua arte fosse suprema, ele não era nem como pessoa nem pelo semblante mais bonito que mestre Forese” [14]. Forese da Rabatta, seu parceiro, é descrito como “pequeno e deforme, com o rosto achatado e acanhado...” (ib.). O lugar no contexto da obra desta novela (Jornada VI, 5) é numericamente significativo, pois esta Jornada está dedicada a examinar o motto di spirito [palavra ou expressão espirituosa], o Witz, como diria Freud. Nessa breve narrativa, Giotto e Forese inspecionam uma propriedade rural; surpreendidos por um temporal e, completamente encharcadas, pedem emprestado a um camponês conhecido alguns trapos velhos[15]. Na novela, o aspecto particularmente repulsivo de Giotto, vestido com trapos emprestados, inspira a Forese um motto di spirito, uma frase espirituosa: como alguém poderia imaginar que por trás daquele homem de mau aspecto poderia estar oculto o maior pintor do mundo? “Giotto imagine: se por ventura um estrangeiro que nunca tivesse te encontrado antes viesse ao nosso encontro agora: acreditas que ele acreditaria que tu és o melhor pintor do mundo, como tu realmente és?” [16] (trad. Minha). Giotto, porém, de imediato, retruca, pagando o chiste com a mesma moeda da palavra arguta: “Mestre, acredito que (o estrangeiro) acreditaria (nisso) quando, Vos olhando, ele acreditasse que vós conhecíeis o abc” [17]. Ou seja: quem visse Forese não diria que ele era um famoso jurista. O que vale para mim vale para Você!
A própria fórmula gramatical e retórica usada por Boccaccio é reveladora: ela remete ao seguinte verso da Divina Comédia (XIII, 25), “Cred’io ch’ei credette ch’io credesse...”, no contexto em que os suicidas são punidos, sendo transformados em plantas, o que poderia levar a pensar que a própria transformação (Metamorfose) seja o objeto da comparação feita por Boccaccio. A idéia que a novela transmite é de que não basta que o pintor seja sublime, se ele não conseguir dominar a argúcia, a nova arte da retórica: o motto di spirito. Numa hierarquia ideal, a argúcia literária antecede a pintura e a ultrapassa. Partindo-se da nova datação[18], ou seja, aproximadamente 1342, alguns anos da grande peste negra e da redação do Decameron, a descrição da morte, que constitui a moldura histórica do texto, pode ser considerada inspirada mais no afresco de Pisa e menos no evento histórico da peste. O afresco é de grandes dimensões (mais de 20 m de comprimento) e, situado na cidade de Pisa, está muito próximo de Florença, a cidade em que Boccaccio vivia. Portanto, é natural pensar que o autor possa ter acompanhado as discussões da época sobre o afresco.

No afresco é narrada uma história por meio de imagens que são complementadas por textos que, introduzidos no afresco, ilustram as imagens. Do ponto de vista plástico, O Triunfo da Morte caracteriza-se por um uso relativamente moderno da perspectiva e, do ponto de vista literário, pela afirmação de uma estratégia narrativa que compõe uma complexa arquitetura. Dentre os textos retratados no afresco, dezoito textos menores compõem a moldura do afresco, encontrando-se num espaço que um limiar entre o afresco e o seu exterior[19]. Preenchendo o espaço de uma moldura, os textos e as imagens que os apresentam (figuras, rostos), traçam uma fronteira entre texto e não-texto, entre vida e morte, entre metáfora e literalidade. No espaço interior do quadro há somente quatro textos, acompanhados ou circundados por imagens, de forma tal que, na contemplação, o observador é forçado a realizar uma nova interpretação das imagens através dos textos e, vice-versa, uma nova leitura dos textos, à luz de suas múltiplas relações com as imagens.
Pintadas em seqüência lado a lado, as imagens, enumeradas, interferem umas nas outras. Há seis cenas diferentes:
1ª cena: vemos cinco eremitas, apresentados em seu dia a dia de virtudes: lendo ou ocupados com seus afazeres domésticos, enquanto um deles segura um pergaminho, com a inscrição mais longa (o primeiro dos quatro textos).
2. Segue, no alto, um poço, parecido com um vulcão, que representa a boca do inferno; algumas almas danadas estão caindo dentro dele.
No meio do afresco está representada a morte, com sua enorme foice, sobre a qual há uma inscrição (o segundo texto). Anjos e diabos tentam conquistar as almas de homens recém falecidos.
3. No canto inferior à direita, vêem-se dez cavaleiros, entretidos em prazerosas atividades: música, conversa, jogo. Este elemento, a brigada alegre, é a grande novidade para a iconografia da época. Entre estes cavalheiros há a dama com o cachorrinho, simbolizando o novo lugar da mulher, que corresponde ao lugar dado à mulher no Decamerão. Trata-se de seis homens e sete mulheres (no Decamerão serão sete e três), que conversam amenamente (o que relembra a primeira novela de “Madama Oretta” da VI Jornada, a mesma Jornada do conto de Giotto, que é uma novela significativamente meta-narrativa, sobre o princípio de contar novelas).
4. No canto superior, à direita, há dois anjos com asas de diabos, com os braços estendidos (talvez para advertir a alegre brigada sobre o perigo representado pela morte). Carregam uma inscrição que se encontra bem ao centro do quadro (terceiro texto). A morte ameaça os dez cavaleiros com sua foice. Eles estão muito próximos dela, mas há um desencontro. Eles não percebem a presença da morte, não a enxergam, nem desejam perceber esta ameaça. Eles ignoram a morte, numa atitude que lembra a dos dez narradores do Decamerão, que resolvem afastar-se do panorama da peste de Florença, procurando um locus amoenus (no afresco, este lugar aprazível é o canto da alegre brigada), para narrarem suas histórias.
5. Vê-se, na parte inferior ao centro do afresco, um amontoado de mortos, disputados por diabos e anjos e um grupo de aleijados. Estes seguram uma faixa com um dos textos (o quarto texto).
6. No canto esquerdo inferior há outros dez cavaleiros, olhando atentamente, ou talvez, estarrecidos, numa clara atitude de imobilidade frente a três caixões, cada qual contendo um corpo morto, em fase diferente de decomposição. A morte está diretamente sob os olhos dos protagonistas e do observador do quadro. O motivo do fatídico encontro com a morte remonta a um tema conhecido na iconografia da época: o dos três vivos acompanhados dos três mortos, um topos com objetivo didático: o memento mori. A atitude dos cavaleiros, porém, trai uma postura nova, como se a morte estivesse se mostrando pela primeira vez. Um dos cavalheiros indica os mortos, outro tampa o nariz, num esgar de repulsa, um terceiro afasta o olhar, e um quarto olha na direção do observador do quadro, como se formulasse silenciosamente uma pergunta. Os outros quatro cavaleiros olham atentamente. Os dois últimos conversam. (Abaixo dos cavalos, vêem-se alguns animais de caça e alguns criados, o que indica a realização de alguma atividade de caça). Outros cavaleiros afastam o olhar da visão dos mortos.
7. Os corpos em diferentes estágios de decomposição, no canto inferior esquerdo, indicam seu caminho para o além-túmulo, numa imagem nada idealizada da passagem das almas para o outro mundo. Os mortos assim representados não remetem mais a uma morte simbólica. O morto que se encontra mais perto do observador encontra-se reduzido a esqueleto; o morto no caixão central está sendo comido por vermes e o morto que se encontra representado a uma maior distância do observador - e mais perto dos cavaleiros -, está completamente inchado como um corpo de um homem que acabou de morrer. Trata-se sempre de uma contemplação de uma morte material, concreta, terrena, com seus aspectos feios. Repulsivos (os vermes, o mau cheiro). A morte do caixão não ameaça mais (a morte com a foice, no centro do afresco, é diferente), traz curiosidade mórbida, repulsão e atração, ao mesmo tempo. Os três mortos revelam que houve uma transformação da relação com a morte, assim como ela era encarada na Idade Média: não mais uma radical e repentina separação entre carne e espírito, entre alma e corpo, mas um interesse em compreender, aproximando-se e não evitando os efeitos desagradáveis deste encontro. Há diferentes reações à morte, rompendo o esquema da transcendência, da separação nítida e definitiva. A morte entra no cotidiano e é aceita no dia a dia, como indica a presença dos cavaleiros depois da caça, dos eremitas, em seus afazeres cotidianos. O memento mori, a consciência do caráter efêmero da vida, está em vias de transformação.
Vale lembrar que somente a partir do séc. XII a morte é representada como cadáver e que, nas sepulturas, os mortos começam a ser cobertos com lençóis[20]. Por outro lado, certamente pode-se identificar, no afresco de Pisa, uma influência de representações do Juízo Final e, particularmente, da de Giotto que se encontra na Cappella degli Scrovegni, em Pádua, um afresco no qual os corpos dos condenados têm formas plásticas, os suplícios têm aspectos sádicos e toda atmosfera infernal assume ares terrenos, laicos. A própria ressurreição dos mortos, também presente em O Triunfo da morte, pode ser considerada produto de um amor pela vida. Um maior realismo, uma máscara modelada no rosto do falecido leva, segundo Ariès [21] a incorporar aspectos do erotismo (no final do séc. XV e no início do XVI), como aparece evidente, em várias imagens da época. Para alguns autores[22], a relação entre morte e erotismo é absolutamente evidente e será desenvolvida progressivamente na pintura. A evolução para o erotismo já é o efeito de uma sublimação e é tema de um novo grupo social, para o qual conta menos o caráter abstrato do amor, quanto o corpóreo, material, identificável e que, entre outros, pode ser comprado e vendido. Na tradição pictórica o realismo pode levar diretamente do erotismo, que será posteriormente desenvolvido no Decameron. A descrição da morte, portanto, pode ser vista como etapa obrigatória para entrar no terreno do erotismo, que o texto de Boccaccio desenvolverá. O fascínio pelo corpo morto, no século XVI [23] pode ser conseqüência de uma radicalização deste interesse inicial. A materialidade do corpo, seu caráter físico, seus inchaços, sua degeneração é o elemento que permite passar de temas religiosos ou existenciais para abordar este novo, subterrâneo, reprimido aspecto do olhar sobre o mundo, a partir do corpo. O erotismo torna-se o produto do interesse pela morte, seu outro lado.
Embora a pintura seja organizada pelo princípio para tático, de cenas justapostas, o quadro de Buffalmacco apresenta uma simbologia numerológica, que impõe uma outra leitura. Duas vezes os dez cavalheiros estão em posições diferentes (à esquerda e à direita do afresco), há três mortos em estágios diferentes de decomposição, cinco eremitas, sendo que um deles apresenta o pergaminho com um texto aos cavaleiros (e ao observador) O quadro mostra uma seqüência de cenas, que lhe conferem um movimento: o movimento ondulado e ascendente do pergaminho de um dos eremitas, junto com o caminho sinuoso que leva ao espaço mais elevado onde estão os outros quatro eremitas graças ao recurso à perspectiva. A seguir vê-se um movimento circular (em sentido horário): os eremitas, o inferno, anjos e diabos, a morte que domina, a alegre brigada, aleijados e mortos amontoados, finalmente os dez cavalheiros que olham os três mortos nos caixões. O grande afresco, de fato, sugere uma organização imagética calcada numa textualidade, suscitando do observador que faça sua leitura. Entre os quatro textos incluídos no corpo do afresco, duas escritas dialogam entre si: os aleijados chamam a morte e a morte se nega a eles, declarando buscar os que dela fogem). Os dois outros textos (o primeiro, o dos eremitas e o terceiro, o dos dois anjos) contêm textos diretamente ligados à leitura, à interpretação. A escrita do eremita diz (entre outros) [24]: “Fixem aqui o vosso olhar”. Portanto, o apelo é dirigido diretamente ao observador do quadro. A inscrição dialoga diretamente com a escrita (terceiro texto) que os dois anjos seguram no centro do afresco: “O leitor, nenhum argumento, / Não mantenha seu intelecto apagado/ Mas esteja sempre alerta”. O movimento da leitura pode ser seguido, tendo os eremitas como intermediários em seu percurso ascendente até chegar ao apelo direto ao leitor. O caráter meta-narrativo do quadro é acrescido de outros dezesseis textos, dispostos ao redor do afresco, à maneira de moldura. Oito em baixo, seis no alto e quatro no lado esquerdo. Onde estão tais textos: fora da moldura, mas dentro do quadro[25]? Eles
Apontam para uma estreita relação entre texto e pintura, sendo que as figuras que seguram as inscrições assumem posições diferentes, de acordo com seu conteúdo escritural[26].

II A morte no Decamerão

Com sua seqüência de cenas justapostas, o afresco O triunfo da morte de Buonamico Buffalmacco pode ser entendido como um duplo pictórico, um espelho pictórico do Decamerão, com suas narrativas, cênicas, que explicitam o elemento erótico, que no afresco é apenas aludido. Boccaccio explicita sua particular relação com a pintura, incluindo figuras de pintores em quatro novelas que dialogam umas com as outras, com os pintores Bruno; Calandrino e Buffalmacco que, para os leitores da época, devia ser associado ao autor do afresco, da mesma forma como o Prencipe Galeotto eram evidentemente umas referências à Divina Comédia de Dante. As três novelas sobre os pintores citadas remetem, evidentemente, à novela de Giotto, em que o grande pintor duela verbalmente com um grande jurista. Efeito desta apresentação é que não basta ser um grande pintor Giotto, pois é preciso ter o domínio sobre a linguagem, dominar o motto di spirito, o chiste.
A analogia entre o afresco O Triunfo da morte, de Buffalmacco, e o Decamerão, se dá graças a uma determinada estruturação narrativa em que se entrecruzam elementos pictóricos e literários. Se o triunfo de Buffalmacco parece ser um quadro narrativo, o Decamerão tende a constituir uma ecfrase, uma tentativa de traduzir em palavras determinadas imagens construídas pelo relato. Dentro todas as imagens assim construídas, a da morte é a mais. Como afirma Walter Benjamin em O Narrador[27], é a morte que capta a atenção do leitor de forma literal ou metafórica, a morte ´real´, o cessar da vida num corpo, e a ´inventada´, o final do romance. A morte é o limite da ficção, e como tal não pode ser relatada a partir de uma experiência pessoal; sua descrição indireta, por alguém que não a vivenciou guarda sempre a marca da inautenticidade.
Walter Benjamin (op. cit.) sugere que a autoridade de um texto deriva precisamente da morte, uma morte que está na origem e é o horizonte da ficção. Pode-se dizer que a morte sanciona a passagem do contexto e do referencial ao que é passível de ser transportado, traduzido, metaforizado. A passagem da morte concreta à metafórica se dá por meio de imagens, como aquelas que estão em O Triunfo da Morte. Portanto, a descrição da morte – sempre a morte de um Outro - representa a impossibilidade de descrever a própria morte, e tornar-se assim a testemunha ideal e perfeita, a que viveu a experiência integral. Mas finalmente, diz Benjamin, somente com a morte se revela o sentido da vida.
No Proêmio, o autor-narrador Giovanni Boccaccio afirma que, através da narrativa de casos amorosos, o texto do Decamerão consola e ajuda as vítimas do mal de amor, da melancolia, evidenciando uma função curativa para as narrativas. Na Introdução da I Jornada, em que o autor apresenta a descrição da peste negra que assola Florença, da desolação e dos efeitos morais perniciosos provocados por ela, lemos:
Terrível [maravigliosa cosa] será ouvir aquilo que eu terei que dizer: pois se pelos olhos de muitos e pelos meus não o tivesse visto, não teria a coragem de acreditar e menos ainda de descrevê-lo, mesmo que mo tivesse relatado uma fonte confiável. Eu digo que tão eficiente foi o aspecto pegajoso da peste descrita, em passar de um homem para outro, que ela não se limitava em alastrar o contágio entre humanos, mas causava visivelmente de forma repetida muito mais efeitos[28] (grifo meu).
Terrível (maraviglioso) será ouvir aquilo que eu terei que dizer. A primeira parte do texto consiste de fato numa justificativa da função do narrador e de sua compulsão a contar histórias (“eu devo narrar”): ele vê com seus próprios olhos e, portanto está moralmente autorizado a narrar. O narrador afirma que seu relato não seria, em princípio, confiável: “não teria a coragem de acreditar”; “confiável”. Seu relato é virtualmente inenarrável (“e menos ainda de descrever”). Note-se que no texto aquilo que será “dito” pelo narrador, poderá ser “ouvido” pelo público, embora o texto seja escrito por Boccaccio, seu escritor e poderá ser lido pelo público da época em cópias manuscritas. O vínculo entre visão e o caráter fidedigno ou de verossimilhanças retorna ainda uma vez no texto: “Disto meus olhos tiveram um dia, como há pouco foi dito, entre tantos outros episódios, a seguinte experiência” [29]. A ligação explícita entre o olhar e a experiência é algo novo, que antecipa a Renascença ou que a faz remontar a Boccaccio. Quando a personagem Pampinéia, a rainha eleita pelos dez jovens narradores, terá a palavra, ela vai dar o tom do narrador Giovanni Boccaccio: a nossa miséria, citada por ela, ecoa as “tantas misérias” de Boccaccio, e os corpos mortos, muitas vezes citados na Introdução a I Jornada, aludem àquele outro corpo morto que aparece no final do Canto V da Divina Comédia. Pampinéia reivindica para si a função de testemunha: “Nós vivemos aqui, a meu ver, de forma não diferente, para querer e dever testemunhar quantos corpos forem levados para sepultura”. [30] Boccaccio tem como premissa o fato de ter visto os fatos com os próprios olhos. Do contrário, não teria tido condições de fazer um relato eticamente fundado. Boccaccio coloca-se, portanto, na posição da testemunha[31].
Os objetos que foram de propriedade do homem enfermo, ou morto pela enfermidade, tocados por animal fora da espécie humana, não somente contaminavam pelo contágio, mas em breve tempo o matavam. Disto meus olhos tiveram um dia, como há pouco foi dito, entre tantos outros episódios, a seguinte experiência (grifo meu).[32]
Aparentemente, tratar-se-ia de passagem autobiográfica: O narrador fala em primeira pessoa, sentindo-se forçado a falar/escrever: “eu devo dizer” (ele conta escrevendo e escreve para contar). Esta obrigação evidentemente moral (eu devo dizer) tem muito da compulsão a repetir o relato traumático por parte da testemunha, uma compulsão que o escritor de literatura de testemunho conhece bem[33]. O que o narrador tem a dizer é ambíguo: pois é maraviglioso e espantoso. É maravilhoso, algo ligado intimamente à visão (mirabilia e mirari: ver), mas é, ao mesmo tempo, algo de terrível.
Em sua Introdução a I Jornada, Boccaccio narra uma historieta sobre a peste em Florença, relato que dá sustentação à sua própria posição de testemunha. O episódio é muito circunscrito[34] e apresenta um quadro do cotidiano durante o período da peste: dois porcos famintos tentam se apoderar da roupa de um morto, mas logo caem como que fulminados pela doença. Nas palavras de Boccaccio:
Os trapos de um pobre coitado morto por esta enfermidade foram jogados na pública rua, quando vieram casualmente dois porcos e, segundo o hábito deles, agarraram os trapos primeiro com focinho e depois com seus dentes e esfregaram em sua cara. Pouco depois e, após umas convulsões, como se tivessem tomado veneno, ambos caíram em cima dos trapos, que por azar foram antes jogados na rua[35].
Boccaccio dá ao episódio um valor histórico que dificilmente lhe pode ser creditado Mas é somente por este pequeno episódio que o leitor fica sabendo que o autor-narrador Boccaccio viveu durante a peste em Florença. Nossa ligação com a história, a justificativa do Decamerão, sua autenticidade está toda neste episódio, pois a descrição da peste, na opinião unânime dos críticos, segue como acenamos acima, os modelos do próprio Tucídides, de Lucrécio e de Paolo Diácono.
“Eu mesmo tive a doença e eu mesmo vi outros que padeciam dela”, diz Tucídides, admitindo ter sido acometido pela peste e dando ao texto sua nota de autenticidade. Por sua vez, a frase de Boccaccio “de que os meus olhos tomaram um dia essa experiência” (op. cit.), equivale a uma declaração de veracidade. Boccaccio como Tucídides, portanto, tira dessa experiência, dessa visão concreta, a força para se erguer como testemunha de sua época – uma época em que a morte foi certamente o aspecto mais significativo - e, a partir disso, erigir, inabalável, o castelo de sua ficção.
Andrea Lombardi

BIBLIOGRAFIA
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literatura, e história da cultura. Obras escolhidas v. 1. São Paulo, Brasiliense, 1996
VAGLIO, Anna. Invito alla lettura di Boccaccio. Milano: Mursia, 1988
[1] VAGLIO, Anna. Invito alla lettura di Boccaccio. Milano: Mursia, 1988, p. 7
[2] BATTAGLIA RICCI, Lucia. Boccaccio. Roma: Salerno ed., 2000, p. 28 . BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão (a c. V. Branca). Torino: Einaudi, 1992, p. XLVI
[3] BOCCACCIO, G. op. cit., p. 27 (trad. Minha): “cento milia creature umane si crede per dentro alle mura della città di Firenze essere stati di vita tolti...”;
[4] PROCACCI, Giuliano. Storia degli italiani. Bari: Laterza, 1978, p. 107 e seg
[5] SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, Memória, Literatura: O testemunho na Era das Catástrofes. Campinas: Ed. Unicamp/ Fapesp, 2002
[6] “La descrizione della peste largamente dipende dalle pagine di Paolo Diacono” in BATTAGLIA RICCI, Lucia. “Giovanni Boccaccio”, In Storia della letteratura italiana. [Dir. E. Malato], Roma: Salerno ed. , 1995, p. 801
[7] Veja-se a magnífica tradução de Augusto de Campos, único que conserva o nome Galeotto, para designar o intermediário da relação entre Genebra e Lancelot, no ciclo arturiano, ou seja, Gelehaut e, ao mesmo tempo, um neologismo de Dante: “Galeotto fu il libro e chi lo scrisse”. DE CAMPOS, Augusto. Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti. São Paulo, Arx, 2003
[8] BOCCACCIO, G. , op. cit. , p 7
[9] “Comincia il libro chiamato “Decamerão”, cognominato Prencipe Galeotto, nel quale si contengono cento novelle, in diece dì dette da sette donne e da tre giovani uomini”; “Qui finisce la decima e ultima giornata del libro chiamato “Decamerão”, cognominato prencipe Galeotto”. Cf. BOCCACCIO, G. Op. cit. [trad. Minha], p. 3 e p. 1261
[10] “... una luce vermiglia / la qual mi vinse ciascun sentimento; / e caddi come l’uom cui sonno piglia./ Ruppemi l’alto sonno ne la testa.”
ALIGHIERI, Dante. Inferno, (org. Daniele Mattalia), Milano: Rizzoli, 1975, Canto III
[11] Finito questo, la buia campagna / tremò sì forte, che de lo spavento /la mente di sudore ancor mi bagna. / La terra lagrimosa diede vento, / che balenò una luce vermiglia / la qual mi vinse ciascun sentimento; / e caddi come l’uom cui sonno piglia. (op. cit., canto IV)
[12] Trata-se da VIII, 6, IX, 3 e IX,5 e a VI, 5
[13] (trad. Minha) “il visivo senso degli uomini vi prese errore, quello credendo esser vero che era dipinto, p. 738, novella VI, 5
[14] Sobre a feiura de Forese, um grande jurista e tabelião, Cf. BRANCA, V., In BOCCACCIO, G. , op.cit.., p. 736-7, nota 4 e 5
[15] No filme Decamerão, de Pier Paolo Pasolini, esta cena ocupa uma posição central (no meio de nove episódios), como se quisesse lembrar da posição central da VI jornada e da novela de Giotto (5ª posição na 6ª Jornada). Pasolini assumiu o papel de Giotto e, estendeu o tema da novela, conferindo uma ênfase extraordinária à personagem de Giotto, através do acréscimo de outros quatro episódios, nos quais Giotto-Pasolini é retratado ao pintar.
[16] BOCCACCIO, G. Op. cit., p. 739 (trad. minha) “Giotto, a che ora venendo di qua allo 'ncontro di noi un forestiere che mai veduto non t'avesse, credi tu che egli credesse che tu fossi il miglior dipintor del mondo, come tu se'?"
[17] BOCCACCIO, G. Ib., p. 740 (trad. minha).“Messere, credo che egli il crederebbe allora che, guardando voi, egli crederebbe che voi sapeste l’abbiccì.”
[18] BATTAGLIA RICCI, L. , op. cit.
[19] (Alguns desses textos infelizmente se perderam na última restauração do afresco, danificado pelo bombardeio aliado na Segunda Guerra Mundial)
[20] ARIÉS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de J.: Francisco Alves, 1977, p. 33
[21] Ariès (op. cit. , p. 86)
[22] KIENING, Christian. Das andere Selbst. Figuren des Todes and der Scxhwelle zur Neuzeit. München: Fink, 2003, p. 22
[23] (ib, Ariès, p. 87),
[24] Se vostra mente serrá bene accorta/ Tenendo qui la voistra vista fitta,/ La vanagloria ci sarà sconficta/ Et la superbia vederete morta./ Et vpoi serrete ancor di questa sorta!/ Or observate la lege che v’è scripta;
BATTAGLIA RICCI, P. 106
[25] Em Ragionare, p. 239 há o texto de um deles, abaixo a dama com cachorrinho (dos dez cavaleiros da direita): Femina vana, perché ti delecti/ D’andar così dipinta et adorna…/ che vó piacere al mondo più che a Dio?/ Ai lasscia! Che sententia tu ne aspecti/ Se incontenente il tuo cor non orna/ Ad confessarsi spesso d’ogni rio!
[26] BATTAGLIA RICCI, L. Ragionare nel giardino, op. cit., p. 240
[27] BENJAMIN, Walter. “O Narrador” in: Magia, técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura, e história da cultura. Obras escolhidas v. 1. São Paulo, Brasiliense, 1996
[28] BOCCACCIO, G., op. cit. (trad. minha), p. 17
[29] Ib., p. 18
[30] Ib., p. 33 “Noi dimoriamo qui, al parer mio, non altramente che se essere volessimo o dovessimo testimonie di quanti corpi morti ci sien “.
[31]Trata-se de um tema contemporâneo de grande relevância, uma comparação que leva em conta a terrível devastação que a peste trouxe para a Europa toda com uma catástrofe de proporções inimagináveis. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Quel che resta d’Auschwitz. Torino: Bollati Boringhieri, 1998
[32] BOCCACCIO, G. ib. , p. 18
[33] SELIGMAN-SILVA, Márcio, op. cit.
[34] E, como Primo Levi diz a propósito do personagem Hurbinek, em A Trégua, somente este relato testemunha que os fatos realmente aconteceram.REF BIBLIOGR.
[35] BOCCACCIO, G. ib., p. 18

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