quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Maquiavel e o destino da Europa


                                            Matthäus Merian, Sacco di Roma 6 maggio 1527.
                                                     Acquaforte da Johann Ludwig Gottfried,
                                                       Historische Cronica


 
Maquiavel e o destino da Europa

As atuais dificuldades em que versa a Europa (Grécia e Itália, países de tradição “clássica”), apontam para um duplo trauma de nascimento – como definir a violenta agregação da Europa no séc XVI: uma origem, um nascimento? – quando príncipes se tornavam imperadores pela ingerência dos aventureiros e do mercado e quando os estados europeus se tornaram “modernos”, a um preço caro demais: devastações, emigração de massa, erradicação das populações. A memória – é sabido – não concede perdão. Ela guarda por anos ou séculos aqueles “monumentos da barbárie “ (W.Benjamin) e de forma abrupta (em crises subitâneas) ou, em momento de maior calma (em princípio, momentos de crise ou de depressão) devolve seus fantasmas, aumentados.
Desde 1492 o mundo está dividido numa hierarquia, que extendeu seus tentáculos sempre mais longe e afirmou sua hegemonia no cosmo inteiro (I. Wallerstein O sistema mundial da economia européia). O ano de 1492, fatídico, coincide com a expulsão dos “mouros” e, sobretudo com a expulsão dos judeus, uma primeira catástrofe  inimaginável na história desse povo.  É fácil ver retrospectivamente nos judeus, que eram tradutores e intérpretes, além de comerciantes e cosmopolitas, uma espécie de “consciência” coletiva intelectual do Velho mundo. Eles que falavam facilmente seis línguas, administravam a Penínula Ibérica e, ao mesmo tempo, eram letrados e especulavam sobre os complexos caminhos da Cabala. Expulsão dos judeus, derrota dos mouros e “conquista” da América: o ano de 1492 trouxe uma coincidência sintomática e programática: o  mundo “moderno” teve sua origem -  como no terceiro filme Alien,  quando vemos os humanos são derrotados e um alien se dirige à terra, comandado pelo computador central. O mundo, em sua expansão depois de 1492, vive essa sua origem muito violenta. O mundo precusou afastar a ética, simbolizada pelos judeus e, posteriormente, pelos protestantes (os católicos eram governados por papas-reis, guerreiros e bom viveurs).
Maquiavel escreve então seu Principe, com um estilo vigoroso, repleto de imagens fortes, que reforçam o uso da língua vulgar moderna, no caso dele o florentino. Mas Maquiavel comete dois tropeços metodológicos, que ficaram encobertos pelo brilho de sua prosa. Por um lado, a Serenissima, a gloriosa República de Veneza, é considerada por ele um inimigo mortal (e isso foi não somente por Maquiavel). A unificação da Península (último dos capítulos do Principe), certamente não podia ser empreendida, se Veneza, principal potência na Península e no Mediterrâneo continuava considerando prioritária uma aliança com o papa ou com a França, exatamente contra Veneza).
Em segundo lugar, se Maquiavel não disse literalmente, como muitos afirmam, a fatídica frase:  “O fim justifica os meios”, ele escreveu algo muito parecido: em seu cap. XVIII o Principe afirma que “nas ações de todos os homens, especialmente nas dos príncipes, quando não há juiz a quem apelar, o que vale é o resultado final. “ (Príncipe, cap. XVIII, p. 107 Penguin – Companhia,2010 ). A subordenação ao fim parece muito clara na narrativa do Princípe,  que apresenta Cesare Borgia como herdeiro das glórias de Florença e da Itália. E Borgia, no fundo é um espécie de anão deformado (historicamente e eticamente), um Jack o Estripador da política. Filho do  sangrento papa Alexandre Borgia, irmão de Lucrezia Borgia. Somente uma visão distorcida e irônica de um Maquiavel, autor da Mandrágora, podia ser apresentado como potencial origem de uma nova  dinastia, que poderia unificar a Itália.
A hipóetese, aqui, é que a  ética de Maquiavel pode ser considerada falha e pouco produtiva, não porquê de forma escandalosa defende uma prática vergonhosa das relações humanas (há uma condescendência com a terrível violência representada de forma espalhafatosa), mas porquê  sua leitura do contexto da época estava  equivocado, pois a ausência da Sereníssima República de Veneza na análise da Península apontava para uma falha decisiva. Para Maquiavel também vale o princípio – que é vigora na literatura: uma análise precisa estar baseada numa leitura plausível e aceitável, para tornar-se pertinente  (ou seja: que pertence)  e produtiva (ou seja, que se torna indispensável na leitura posterior).

Um comentário:

  1. "nas ações de todos os homens, especialmente nas dos príncipes, quando não há juiz a quem apelar, o que vale é o resultado final".

    Uma coisa que sempre me pareceu um paradoxo é a forma como Maquiavel legitima o uso da tirania política pelo príncipe. Ora, se vale qualquer coisa para se chegar ao fim ou obter o poder almejado, Maquiavel não deixa de ser um potencial obstáculo, pois o príncipe poderia também aniquilá-lo caso fosse necessário. Seria no caso uma ética que coloca seu próprio formulador numa forca.

    Enfim, não deixo de achar Maquiavel uma mente confusa. Ou talvez seja a minha...

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