quinta-feira, 9 de agosto de 2018



1

PRIMO LEVI Se isto é um homem. Capítulo: "O canto de Ulisses"Levi, P. (2002) Se isto é um homem. Lisboa: Público (Colecção Mil Folhas), 123-127.

http://dererummundi.blogspot.com.br/2007/04/no-dia-em-que-primo-levi-se-recordou-do.html  




“Quem sabe como e porquê me lembrei disto: mas não temos tempo para escolher, esta hora já não é sequer uma hora. Se Jean é inteligente, vai perceber

Da flama antiga o mais alto dos cornos,
Murmurando, tornou-se tremulante
Como por vento archote verdascado.

A crista ele agitava lado a lado
Como se a língua falasse;
Uma voz se formou que até nós veio:
Quando…

A este ponto paro e procuro traduzir. Um desastre: pobre Dante e pobre Francês! Todavia a experiência parece prometer: Jean admira a bizarra semelhança da língua, e sugere-me a palavra apropriada para traduzir «antiga». E a seguir ao «Quando»? O vazio. Um buraco na memória. «Eneias não lhe pusera ainda o nome.» Outro buraco. Emergem alguns fragmentos não utilizáveis, «…Amor por filho jovem, pai idoso, jurado amor de esposo que a Penélope o coração de gáudio preenchia…» será mesmo exacto?

 … Ao mar, pois, eu me fiz, mar alto aberto.

Disto sim, disto estou certo, estou em condições de explicar ao Pikolo, de discriminar por que é que «eu me fiz» não é «je me mis», é muito mais forte e audacioso, é uma corrente quebrada, é atirar-se a si próprio para além de uma barreira, nós conhecemos bem este impulso. O mar aberto: Pikolo viajou pelos mares e sabe o que significa, é quando o horizonte se fecha sobre si mesmo, livre, direito e simples, e só permanece o cheiro do mar: coisas doces ferozmente longínquas (…)

«Mar aberto.» «Mar aberto.» Sei que liga com «… dessa companha escoltado que nunca ao meu destino me largara», mas já não me lembro se vem antes ou depois. E também a viagem, a viagem temerária para além das colunas de Hércules, que tristeza, sou obrigado a ter de a contar em prosa: um sacrilégio. Apenas salvei um verso, mas vale a pena meditá-lo:

… Não fosse alguém tal arraia transpor 


«Transpor»: tinha de vir para o Lager para me aperceber de que «transpor» está relacionado com a expressão anterior, «eu me fiz». Mas não o revelo a Jean, não tenho a certeza de que se trate de uma observação importante. Quantas coisas mais haveria a dizer, mas o Sol já está alto, o meio-dia está próximo. Tenho pressa, uma pressa furibunda. Atenção agora, Pikolo, abre os ouvidos e a mente, preciso que entendas:

De vossa origem meditai n`altura
Que vos impede a vida como brutos
Mas por saber, por bem, sempre exaltada

Como se eu também o ouvisse pela primeira vez: como um tocar de trompete, como a voz de Deus. Por um momento, esqueci-me de quem sou e onde estou. Pikolo pede-me para repetir. Como é bom Pikolo, apercebeu-se de que está a fazer-me bem. Ou talvez seja mais; talvez, apesar da tradução superficial e do comentário primário e apressado, tenha recebido a mensagem, tenha sentido que diz respeito a todos os homens atormentados e a nós especialmente; e que diz respeito a nós dois, que ousamos raciocinar disto (…)

Os ânimos tão fortes eu excitei…

… e esforço-me, mas em vão, por explicar quantas coisas significa este «excitei». Aqui mais uma lacuna, desta vez irreparável. «… A Lua ao dia a luz já consentia» ou algo parecido, mas antes… Nenhuma ideia (…). Pikolo tem de me desculpar, esqueci-me de pelo menos quatro tercetos

… Quando distante vimos, nebulosa,
Isolada montanha que julguei
Das altas a mais alta que então vira.

Assim mesmo, não «muito alta», «das altas a mais alta» grau superlativo. E as montanhas, quando se vêem de longe… as montanhas… oh, Pikolo, Pikolo, diz qualquer coisa, fala, não me deixes pensar nas minhas montanhas, que apareciam no lusco-fusco ao anoitecer quando regressava de comboio de Milão a Turim! Chega, é preciso ir para a frente, essas coisas que se pensam mas não se dizem Pikolo espera e olha para mim.
Dava a minha sopa de hoje para saber ligar «a mais alta que então vira» com o final. Esforço-me por reconstruir através das rimas, fecho os olhos, mordo os dedos: mas não serve, o resto é silêncio. Dançam na minha cabeça outros versos: «… e a terra só de lágrimas foi vento…», não, é outra coisa. É tarde, chegámos à cozinha é preciso concluir:

Três vezes na voragem o voltou;
A quarta, como de Alguém foi desejo.
Ergueu-se a popa e se abismou a proa…

Detenho Pikolo, é absolutamente necessário e urgente que oiça, que entenda este «como Alguém foi desejo», antes que seja demasiado tarde, amanhã ele ou eu podemos estar mortos, ou nunca mais voltar a ver-nos, tenho de lhe dizer, explicar-lhe que a Idade Média, o tão humano, necessário e porém inesperado anacronismo, e outras coisas mais, algo de gigantesco que eu próprio só agora vi, na intuição de um instante, talvez o porquê do nosso destino, do nosso estar aqui hoje…”.
http://dererummundi.blogspot.com.br/2007/04/no-dia-em-que-primo-levi-se-recordou-do.html  Levi, P. (2002) Se isto é um homem. Lisboa: Público (Colecção Mil Folhas), 123-127.

Nenhum comentário:

Postar um comentário