domingo, 12 de agosto de 2018



2 Hurbinek  A Trégua 


"Hurbinek era um zé-ninguém, um filho da morte, um filho de Auschwitz. Aparentava cerca de 3 anos, ninguém sabia nada dele, não falava e não tinha nome: aquele curioso nome, Hurbinek, fora dado por nós, se calhar por uma das mulheres, que tinha interpretado com aquelas sílabas um dos sons inarticulados que o pequeno de vez em quando emitia. Estava paralisado dos rins para baixo, e tinha as pernas atrofiadas, delgadas como canas; mas os seus olhos, perdidos no rosto triangular e macilento, dardejavam terrivelmente vivos, plenos de perguntas, de asserção, de vontade de se desencadear, de quebrar o túmulo do mutismo. A palavra que lhe faltava, que ninguém tivera o cuidado de lhe ensinar, a necessidade da palavra fazia pressão no seu olhar com uma urgência explosiva: era um olhar selvagem e humano ao mesmo tempo, aliás maduro e juiz, que nenhum de nós era capaz de suster, tão carregado era de força e de penar.
Ninguém, salvo Henek: era o meu vizinho de cama, um robusto e florescente rapaz húngaro de 15 anos. Henek passava junto do catre de Hurbinek metade dos seus dias. Era materno mais do que paterno: é bastante provável que, se aquela nossa precária convivência se tivesse prolongado para além de um mês, com Henek Hurbinek teria aprendido a falar; certamente melhor do que com as raparigas polacas, demasiado ternas e demasiado vãs, que o embriagavam de carícias e de beijos, mas que fugiam à sua intimidade.
Henek, porém, tranquilo e teimoso, sentava-se ao lado da pequena esfinge, imune à potência triste que dela emanava; levava-lhe de comer, endireitava-lhe os cobertores, limpava-o com mãos hábeis, privadas de repugnância; e falava com ele, naturalmente em húngaro, com voz lenta e paciente. Ao fim de uma semana, Henek anunciou com seriedade, mas sem sombra de presunção, que Hurbinek "dizia uma palavra". Qual palavra? Não sabia, uma palavra difícil, não húngara: qualquer coisa como "mass-klo", "mastiklo". Na noite pusemo-nos de ouvido à escuta: era verdade, do canto de Hurbinek vinha de quando em quando uma palavra. Nem sempre exactamente a mesma, na verdade, mas era com toda a certeza uma palavra articulada; ou melhor, palavras articuladas levemente diferentes, variações experimentais em volta de um tema, de uma raiz, talvez de um nome.
Hurbinek continuou enquanto viveu nas suas experiências obstinadas. Nos dias seguintes, todos o ouvíamos em silêncio, e havia entre nós falantes de todas as línguas da Europa: mas a palavra de Hurbinek permaneceu secreta. Não, não era certamente uma mensagem, nem uma revelação: talvez fosse o seu nome, se porventura lhe tivesse calhado algum em sorte; talvez (segundo uma das nossas hipóteses) quisesse dizer "comer" ou "pão"; ou talvez "carne" em boémio, como afirmava com bons argumentos um de nós, que conhecia esta língua.
Hurbinek, que tinha 3 anos e talvez tivesse nascido em Auschwitz sem nunca ter visto uma árvore; Hurbinek, que combateu como um homem, até ao último respiro, para conquistar a entrada no mundo dos homens, de que um potentado bestial o havia banido; Hurbinek, o sem-nome, cujo minúsculo antebraço também foi marcado com a tatuagem de Auschwitz; Hurbinek morreu nos primeiros dias de Março de 1945, livre mas não redimido. Dele nada resta: Hurbinek testemunha através destas minhas palavras."

Primo Levi, A trégua (trad.de José Colaço Barreiros), Teorema, pp. 19-21 https://nobilissimavisione.blogs.sapo.pt/a-injustica-do-mundo-i-primo-levi-27297

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