0 (3) capítulo "é"A ética da leitura Hillis Miller in
Ética da Leitura. Rio de janeiro, Imago, p. 73-88 [EXTRATOS]
capítulo "A ÉTICA DA LEITURA "
p. 77
Eis aqui os dois primeiros versos de "Young Sycamore" de
William Carlos Williams, poema extraído de Collected Poems 1934:
I must tell you
This young tree ...
[Preciso lhe contar -
Essa jovem árvore ... ]
Por que o poeta precisa nos contar? Que abri ação, com ulsão
o im erativo força a falar? A que lei deve obedecer? O resto
desse pequeno poema de vinte e quatro versos curtos não vai muito
além, pelo menos aparentemente, da descrição da árvore e do
modo como ela "se ergue" a partir de seu "tronco redondo e firme"
diretamente para cima até os "two/eccentric knotted/twigs/bending
forward/hornlike at the top" (dois/excêntricos e nodosos/ galhos/
curvados para a frente/no alto como chifres). Nada poderia ser
mais comum, ou, de certa maneira, mais trivial. Tal poema aparentemente
teria pouco a ver com preocupações éticas...
p. 78-9
Milton nos diz, nos versos de abertura do Paraíso Perdido, que seu
intuito é ''justificar os desígnios de Deus frente aos homens", e não
\
\ há razão para duvidar que era isso que pretendia fazer. Mas o ue i de fato _temos no poema é u~a esplêndida história interligada de
acontecimentos no ceu, no mferno e na 'terra, com grandes e
espantosas cenas descritas de forma brilhante e com ações heróicas
narradas dramaticamente. Em resumo, gerações de leitores têm
achado que a grandiosidade do poema supera de longe qualquer
A Ética da Leitura
afirmação direta de opiniões teológicas. Esse aspecto é enfatizado
pêlo fato de que mesmo alguns leitores que rejeitam totalmente a
teologia de Milton consideram o Paraíso Perdido um grande poema [Cleanth Brooks, "The Primacy of the Author", The Missouri Review,
6.2, 1983, pp. 161-72].
p. 81
A desconstrução desafiou o pressuposto de que uma obra literária pode ser explicada pela referência à individualidade criadora do autor. Também questionou a suposição de que a história da literatura, ou a história como tal, seja uma série de "períodos"definíveis, que se desenvolvem passando de um para o outro, segundo algum paradigma de crescimento orgânico. (Tais metáforas são praticamente irresistíveis. Eu mesmo já as utilizei aqui ao
relatar o "desenvolvimento" dos estudos literários nos Estados
Unidos, ou ao falar do "florescimento" da teoria literária, ou ao
sugerir que Kant concebeu Schiller que concebeu Arnold que
concebeu Trilling ou, de forma mais geral, os estudos humanísticos
nos Estados Unidos. Qual é exatamente o modo de transferência,
tradução, ou transmissão presente em cada uma dessas transações?) Além disso, a desconstrução questionou o pressuposto de que uma
pbra de qualidade deveria ter ou tem um significado único, passível de ser determinado e organicamente unificado. Colocou em dúvida a certeza de que a linguagem, incluindo a linguagem literária, é primordialmente referencial, que inicialmente nomeia algum
estado de coisas extralingüístico e extrai o seu valor da sua exatidão
e força justamente nesse processo. Afinal, a desconstrução mostrou
pacientemente, através da leitura cuidadosa de uma variedade de
textos literários e também filosóficos, que a linguagem figurada
não é um floreio casual acrescentado a uma base literal, mas que essa linguagem, inclusive a linguagem literária, é inteiramente
figurativa, da cabeça aos pés, por assim dizer.
p. 85
Seria presunção minha tentar descrever aqui em detalhes
como poderia se dar, de fato, o estabelecimento de uma nova ética
de leitura. O novo papel dos estudos literários só pode ser definido em discussões sérias e prolongadas envolvendo jovens e velhos,
conservadores e radicais, teóricos, historiadores da literatura, professores de língua instrumental, marxistas, feministas e todo o
resto. Para tornar tal debate produtivo, seria necessário muita
coragem intelectual e muito boa vontade para resistir aos interesses
adquiridos, mas as condições são adequadas para tornar possível
essa discussão. Contudo, gostaria de especificar o esboço essencial daquilo que seria necessário para recuperar a antiga urgência do "Preciso lhe contar" no que diz respeito ao ensino de literatura.
A obrigação ética primária do professor de literatura é para com a obra literária. Se há um conflito entre isso e a obrgção do Professor para com os alunos, numa direção, e para com a instituição, na
outra, a obrigação para com a obra tem precedência,_por uma
implacável lei da leitura. Embora seja possível imaginar que um
professor faça a opção de permanecer calado em relação ao que
viu numa determinada obra e deixe de escolher essa mesma obra
para sua classe, caso decida adotá-la, deve contar como é na realidade. A seqüência toda de obrigações começa com o ato de leitura e com o apelo ou exigência que a obra faz ao leitor. Boa leitura quer dizer a leitura não canônica, isto é uma disposição para reconhecer o inesperado, talvez mesmo o chocante ou o escandaloso...o, presente até em obras canônicas, talvez principalmente
em obras canônicas, em Homero, Dante ou Shakespeare, em
Milton ou Wordsworth [...].
Quando falo em leitura não canônica, não estou me referindo a
um relativismo crítico ou a uma transferência de significado para a resposta do leitor [reader response, ou estética de recepção], uma
liberdade ao fazer a obra significar qualquer coisa que se queira -
mas justamente o oposto. Estou me referindo a uma resposta à uma exigência feita pelas palavras na página, uma habilidade, infelizmente nada comum, de reagir ao que as palavras na páginas dizem e não ao que queremos que diga ou esperavamos que dissessem quando abrimos o livro.
A boa leitura não. ocorre com tanta freqüência pelo menos não com a freqüencia que poderíamos esperar ou desejar. Talvez ocorra com maior freqüência naqueles que também são bons escritores. A boa leitura não é de modo algum um resultado direto
das pressuposições "teóricas" do leitor. A teoria literária pode
facilitar ou inibir a boa leitura, mas pobre do leitor que procurar
uma obra simplesmente para encontrar nela a confirmação de sua
teoria. Sempre encontrará o que procura, mas não terá lido a obra.
É mais provável que a boa leitura leve à não-confirmação ou a mudanças drásticas de uma teoria, em vez de lhe oferecer qualquer
apoio firme. A leitura, não a teoria, é a única necessidade insubstituível
no ensino da literatura. A rara capacidada de ver o objeto,
nesse caso um poema, um romance, uma peça teatral ou uma obra de filosofia, como ele realmente é, para novamente citar a fraseologia
de Arnold, é a única coisa necessária num bom professor de
literatura.
p. 87
Tal estudo deve ser uma retórica e uma poética, antes
de ser história literária, ou um repertorio de ideias que vem sendo expressas através dos séculos na literatura. A necessidade desse
foco primário na linguagem em si talvez seja a mais controversa
das afirmativas que estou fazendo aqui. Talvez seja esperar muito que os departamentos de língua e literatura abram mão de forma tão ampla da prerrogativa de ensinar tudo e mais um pouc, limitando-se ao seu assunto principal e concentrando-se no verdadeiro projeto de ensinar a boa leitura; mas, já que a boa leitura é
fundamêntalmente necessária para a boa escrita, esse aparente
estreitamento de escopo teria a grande virtude de reunir o ensino
da leitura e o ensino da redação.