Ética da Leitura
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domingo, 19 de agosto de 2018




0 (4) COLERIDGE, Samuel Taylor. A balada do velho marinheiro


(citação) 

“Since then, at an uncertain hour, /
 That agony returns: /
And till my ghastly tale is told, /
This heart within me burns”

Sempre aquela agonia - e sempre em hora incerta 
Retorna desde então; 
E enquanto a minha história tétrica não conto, 
Queima-me o coração.


 (COLERIDGE, Samuel Taylor. A balada do velho marinheiro, seguido de Kubla Khan. Edição bilíngue. São Paulo: Ateliê, 2005, vv. 582-585, tradução Alípio Correia de Franca Neto)
  
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2561399/mod_resource/content/4/A%20BALADA%20DO%20VELHO%20MARINHEIRO.pdf

Primo Levi. Poema: “Il superstite” (O sobrevivente)


Since then, at an uncertain hour, Desde então, a hora incerta, Aquela pena regressa, E se não encontra quem a escute, Queima no peito o coração. Vê de novo os rostos dos companheiros Lívidos na primeira luz, Cinzentos do pó de cimento, Indistintos pela bruma, Tingidos de morte em seu sono inquieto: À noite apertam as suas mandíbulas E sob a mora pesada dos sonhos Ruminando um nabo invisível “Para trás, fora daqui, gente submersa Afastai-vos. Eu não suplantei ninguém, Não usurpei o pão de ninguém, 104 LEVI, A tabela periódica. Tradução de Luis Sérgio Henriques . Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 151 105 

Postado por Andrea Lombardi às 19:07 Nenhum comentário:
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0 (3)  capítulo "é"A ética da leitura Hillis Miller in Ética da Leitura. Rio de janeiro, Imago, p. 73-88 [EXTRATOS]


capítulo "A ÉTICA DA LEITURA "

p. 77
Eis aqui os dois primeiros versos de "Young Sycamore" de William Carlos Williams, poema extraído de Collected Poems 1934:
I must tell you 
This young tree ...
[Preciso lhe contar -
Essa jovem árvore ... ]

Por que o poeta precisa nos contar? Que abri ação, com ulsão o im erativo força a falar? A que lei deve obedecer? O resto desse pequeno poema de vinte e quatro versos curtos não vai muito além, pelo menos aparentemente, da descrição da árvore e do modo como ela "se ergue" a partir de seu "tronco redondo e firme" diretamente para cima até os "two/eccentric knotted/twigs/bending forward/hornlike at the top" (dois/excêntricos e nodosos/ galhos/ curvados para a frente/no alto como chifres). Nada poderia ser mais comum, ou, de certa maneira, mais trivial. Tal poema aparentemente teria pouco a ver com preocupações éticas...

p. 78-9
             Milton nos diz, nos versos de abertura do Paraíso Perdido, que seu intuito é ''justificar os desígnios de Deus frente aos homens", e não \ \ há razão para duvidar que era isso que pretendia fazer. Mas o ue i de fato _temos no poema é u~a esplêndida história interligada de acontecimentos no ceu, no mferno e na 'terra, com grandes e espantosas cenas descritas de forma brilhante e com ações heróicas narradas dramaticamente. Em resumo, gerações de leitores têm achado que a grandiosidade do poema supera de longe qualquer A Ética da Leitura afirmação direta de opiniões teológicas. Esse aspecto é enfatizado pêlo fato de que mesmo alguns leitores que rejeitam totalmente a teologia de Milton consideram o Paraíso Perdido um grande poema [Cleanth Brooks, "The Primacy of the Author", The Missouri Review, 6.2, 1983, pp. 161-72]. 

p. 81
A desconstrução desafiou o pressuposto de que uma obra literária pode ser explicada pela referência à individualidade criadora do autor. Também questionou a suposição de que a história da literatura, ou a história como tal, seja uma série de "períodos"definíveis, que se desenvolvem passando de um para o outro, segundo algum paradigma de crescimento orgânico. (Tais metáforas são praticamente irresistíveis. Eu mesmo já as utilizei aqui ao relatar o "desenvolvimento" dos estudos literários nos Estados Unidos, ou ao falar do "florescimento" da teoria literária, ou ao sugerir que Kant concebeu Schiller que concebeu Arnold que concebeu Trilling ou, de forma mais geral, os estudos humanísticos nos Estados Unidos. Qual é exatamente o modo de transferência, tradução, ou transmissão presente em cada uma dessas transações?) Além disso, a desconstrução questionou o pressuposto de que uma pbra de qualidade deveria ter ou tem um significado único, passível de ser determinado e organicamente unificado. Colocou em dúvida a certeza de que a linguagem, incluindo a linguagem literária, é primordialmente referencial, que inicialmente nomeia algum estado de coisas extralingüístico e extrai o seu valor da sua exatidão e força justamente nesse processo. Afinal, a desconstrução mostrou pacientemente, através da leitura cuidadosa de uma variedade de textos literários e também filosóficos, que a linguagem figurada não é um floreio casual acrescentado a uma base literal, mas que essa linguagem, inclusive a linguagem literária, é inteiramente figurativa, da cabeça aos pés, por assim dizer. 
p. 85
Seria presunção minha tentar descrever aqui em detalhes como poderia se dar, de fato, o estabelecimento de uma nova ética de leitura. O novo papel dos estudos literários só pode ser definido em discussões sérias e prolongadas envolvendo jovens e velhos, conservadores e radicais, teóricos, historiadores da literatura, professores de língua instrumental, marxistas, feministas e todo o resto. Para tornar tal debate produtivo, seria necessário muita coragem intelectual e muito boa vontade para resistir aos interesses adquiridos, mas as condições são adequadas para tornar possível essa discussão. Contudo, gostaria de especificar o esboço essencial daquilo que seria necessário para recuperar a antiga urgência do "Preciso lhe contar" no que diz respeito ao ensino de literatura. 
     A obrigação ética primária do professor de literatura é para com a obra literária. Se há um conflito entre isso e a obrgção do Professor para com os alunos, numa direção, e para com a instituição, na outra, a obrigação para com a obra tem precedência,_por uma implacável lei da leitura. Embora seja possível imaginar que um professor faça a opção de permanecer calado em relação ao que viu numa determinada obra e deixe de escolher essa mesma obra para sua classe, caso decida adotá-la, deve contar como é na realidade. A seqüência toda de obrigações começa com o ato de leitura e com o apelo ou exigência que a obra faz ao leitor. Boa leitura quer dizer a leitura não canônica, isto é uma disposição para reconhecer o inesperado, talvez mesmo o chocante ou o escandaloso...o, presente até em obras canônicas, talvez principalmente em obras canônicas, em Homero, Dante ou Shakespeare, em Milton ou Wordsworth [...]. Quando falo em leitura não canônica, não estou me referindo a um relativismo crítico ou a uma transferência de significado para a resposta do leitor [reader response, ou estética de recepção], uma liberdade ao fazer a obra significar qualquer coisa que se queira - mas justamente o oposto. Estou me referindo a uma resposta à uma exigência feita pelas palavras na página, uma habilidade, infelizmente nada comum, de reagir ao que as palavras na páginas dizem e não ao que queremos que diga ou esperavamos que dissessem quando abrimos o livro.
A boa leitura não. ocorre com tanta freqüência pelo menos não com a freqüencia que poderíamos esperar ou desejar. Talvez ocorra com maior freqüência naqueles que também são bons escritores. A boa leitura não é de modo algum um resultado direto das pressuposições "teóricas" do leitor. A teoria literária pode facilitar ou inibir a boa leitura, mas pobre do leitor que procurar uma obra simplesmente para encontrar nela a confirmação de sua teoria. Sempre encontrará o que procura, mas não terá lido a obra. É mais provável que a boa leitura leve à não-confirmação ou a mudanças drásticas de uma teoria, em vez de lhe oferecer qualquer apoio firme. A leitura, não a teoria, é a única necessidade insubstituível no ensino da literatura. A rara capacidada de ver o objeto, nesse caso um poema, um romance, uma peça teatral ou uma obra de filosofia, como ele realmente é, para novamente citar a fraseologia de Arnold, é a única coisa necessária num bom professor de literatura. 

p. 87
Tal estudo deve ser uma retórica e uma poética, antes de ser história literária, ou um repertorio de ideias que vem sendo expressas através dos séculos na literatura. A necessidade desse foco primário na linguagem em si talvez seja a mais controversa das afirmativas que estou fazendo aqui. Talvez seja esperar muito que os departamentos de língua e literatura abram mão de forma tão ampla da prerrogativa de ensinar tudo e mais um pouc,  limitando-se ao seu assunto principal e concentrando-se no verdadeiro projeto de ensinar a boa leitura; mas, já que a boa leitura é fundamêntalmente necessária para a boa escrita, esse aparente estreitamento de escopo teria a grande virtude de reunir o ensino da leitura e o ensino da redação.


Postado por Andrea Lombardi às 17:52 Nenhum comentário:
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domingo, 12 de agosto de 2018



4 Primo Levi capítulo "Argon" em A Tabela Periódica 

O pouco que sei sobre os meus antepassados aproxima-os deste gás [o árgon]. Nem todos eram materialmente inertes, porque isso não lhes era permitido: eram, pelo contrário (ou tinham de ser), suficientemente ativos para ganhar a vida e respeitar uma certa moralidade que dominava e segundo a qual “quem não trabuca, não manduca”. Mas eram, sem dúvida, inertes no seu íntimo, habituados à especulação desinteressada, ao discurso sutil, à discussão elegante, sofística e gratuita. Não será por acaso que os atos que lhe foram atribuídos, embora de natureza vária, têm em comum qualquer coisa de estático, uma postura majestosa de abstenção, de submissão voluntária (ou resignada) às margens do grande rio da vida. Nobres, inertes e raros, a sua história é bastante pobre se comparada com a de outras ilustres comunidades hebraicas da Itália e do resto da Europa

(falta uma parte consistente) 

Postado por Andrea Lombardi às 13:50 Nenhum comentário:
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3  A preocupação do pai de família

ODRADEK Franz Kafka


Alguns derivam do eslavo a palavra Odradek e querem explicar sua formaçao mediante essa origem. Outros a derivam do alemão e admitem apenas uma influência do eslavo. A incerteza de ambas as interpretações é a melhor prova de que são falsas; além disso, nenhuma delas nos dá uma explicação da palavra.
Naturalmente ninguém perderia tempo em tais estudos se não existisse realmente um ser chamado Odradek. Seu aspecto é o de um carretel de linha, achatado e em forma de estrela, e a verdade é que se parece feito de linha, mas de pedaços de linha, cortados, velhos, emaranhados e cheios de nós, de todos os tipos e cores diferentes. Não é apenas um carretel; do centro da estrela sai uma
hastezinha e nesta se articula outra em 6angulo reto. Com a ajuda desta última de um lado e um dos raios da estrela do outro, o conjunto pode ficar em pé como se tivesse duas pernas.
Seriamos tentados e crer que esta estrutura teve alguma vez uma forma adequada e uma funçao, e que agora apenas está quebrada. Entretanto, esse não parece ser o caso; não há pelo menos nenhum sinal disso; em parte alguma se vêem remendos ou rupturas; o conjunto parece sem sentido, porém completo à sua maneira. Nada mais podemos dizer, porque Odradek tem estraordinária mobilidade e não se deixa capturar.
Tanto pode estar no forro, como no Vão da escada, nos corredores, no saguão. Ás vezes passam-se meses sem que alguém o veja. Terá se aninhado nas casas vizinhas, mas sempre volta à nossa. Muitas vezes, quando cruzamos a porta e o vemos lá embaixo, encostado ao balaústre da escada, temos vontade de falar-lhe.
Naturalmente não se fazem a ele perguntas difíceis, mas sim o tratamos – seu diminuto tamanho nos leva a isso – tal qual uma criança. “Como te chamas?”perguntam-lhe. “Odradek”,diz. “E onde moras?” “Domicilio Incerto”, responde , e ri, mas é um riso sem pulmões. Soa como um sussuro de folhas secas.
Geralmente o diálogo acaba aí. Nem sempre se conseguem essas respostas; por vezes guarda um silêncio, como a madeira de que parece ser feito. Inutilmente me pergunto o que acontecerá a ele. Pode morrer? Tudo que morre teve antes um objetivo, uma espécie de atividade, e assim se gastou; isto Não acontece com Odradek. descerá a escada arrastando fiapos frente aos pés de meus filhos e dos filhos de meus filhos? Não faz mal à ninguem mas a idéia de quepossa sobreviver-me é quase dolorosa para mim.
https://franzkafka.com.br/2014/09/14/odradek/
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2 Hurbinek  A Trégua 


"Hurbinek era um zé-ninguém, um filho da morte, um filho de Auschwitz. Aparentava cerca de 3 anos, ninguém sabia nada dele, não falava e não tinha nome: aquele curioso nome, Hurbinek, fora dado por nós, se calhar por uma das mulheres, que tinha interpretado com aquelas sílabas um dos sons inarticulados que o pequeno de vez em quando emitia. Estava paralisado dos rins para baixo, e tinha as pernas atrofiadas, delgadas como canas; mas os seus olhos, perdidos no rosto triangular e macilento, dardejavam terrivelmente vivos, plenos de perguntas, de asserção, de vontade de se desencadear, de quebrar o túmulo do mutismo. A palavra que lhe faltava, que ninguém tivera o cuidado de lhe ensinar, a necessidade da palavra fazia pressão no seu olhar com uma urgência explosiva: era um olhar selvagem e humano ao mesmo tempo, aliás maduro e juiz, que nenhum de nós era capaz de suster, tão carregado era de força e de penar.
Ninguém, salvo Henek: era o meu vizinho de cama, um robusto e florescente rapaz húngaro de 15 anos. Henek passava junto do catre de Hurbinek metade dos seus dias. Era materno mais do que paterno: é bastante provável que, se aquela nossa precária convivência se tivesse prolongado para além de um mês, com Henek Hurbinek teria aprendido a falar; certamente melhor do que com as raparigas polacas, demasiado ternas e demasiado vãs, que o embriagavam de carícias e de beijos, mas que fugiam à sua intimidade.
Henek, porém, tranquilo e teimoso, sentava-se ao lado da pequena esfinge, imune à potência triste que dela emanava; levava-lhe de comer, endireitava-lhe os cobertores, limpava-o com mãos hábeis, privadas de repugnância; e falava com ele, naturalmente em húngaro, com voz lenta e paciente. Ao fim de uma semana, Henek anunciou com seriedade, mas sem sombra de presunção, que Hurbinek "dizia uma palavra". Qual palavra? Não sabia, uma palavra difícil, não húngara: qualquer coisa como "mass-klo", "mastiklo". Na noite pusemo-nos de ouvido à escuta: era verdade, do canto de Hurbinek vinha de quando em quando uma palavra. Nem sempre exactamente a mesma, na verdade, mas era com toda a certeza uma palavra articulada; ou melhor, palavras articuladas levemente diferentes, variações experimentais em volta de um tema, de uma raiz, talvez de um nome.
Hurbinek continuou enquanto viveu nas suas experiências obstinadas. Nos dias seguintes, todos o ouvíamos em silêncio, e havia entre nós falantes de todas as línguas da Europa: mas a palavra de Hurbinek permaneceu secreta. Não, não era certamente uma mensagem, nem uma revelação: talvez fosse o seu nome, se porventura lhe tivesse calhado algum em sorte; talvez (segundo uma das nossas hipóteses) quisesse dizer "comer" ou "pão"; ou talvez "carne" em boémio, como afirmava com bons argumentos um de nós, que conhecia esta língua.
Hurbinek, que tinha 3 anos e talvez tivesse nascido em Auschwitz sem nunca ter visto uma árvore; Hurbinek, que combateu como um homem, até ao último respiro, para conquistar a entrada no mundo dos homens, de que um potentado bestial o havia banido; Hurbinek, o sem-nome, cujo minúsculo antebraço também foi marcado com a tatuagem de Auschwitz; Hurbinek morreu nos primeiros dias de Março de 1945, livre mas não redimido. Dele nada resta: Hurbinek testemunha através destas minhas palavras."

Primo Levi, A trégua (trad.de José Colaço Barreiros), Teorema, pp. 19-21 https://nobilissimavisione.blogs.sapo.pt/a-injustica-do-mundo-i-primo-levi-27297
Postado por Andrea Lombardi às 13:20 Nenhum comentário:
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quinta-feira, 9 de agosto de 2018



1

PRIMO LEVI Se isto é um homem. Capítulo: "O canto de Ulisses"Levi, P. (2002) Se isto é um homem. Lisboa: Público (Colecção Mil Folhas), 123-127.

http://dererummundi.blogspot.com.br/2007/04/no-dia-em-que-primo-levi-se-recordou-do.html  




“Quem sabe como e porquê me lembrei disto: mas não temos tempo para escolher, esta hora já não é sequer uma hora. Se Jean é inteligente, vai perceber

Da flama antiga o mais alto dos cornos,
Murmurando, tornou-se tremulante
Como por vento archote verdascado.

A crista ele agitava lado a lado
Como se a língua falasse;
Uma voz se formou que até nós veio:
Quando…

A este ponto paro e procuro traduzir. Um desastre: pobre Dante e pobre Francês! Todavia a experiência parece prometer: Jean admira a bizarra semelhança da língua, e sugere-me a palavra apropriada para traduzir «antiga». E a seguir ao «Quando»? O vazio. Um buraco na memória. «Eneias não lhe pusera ainda o nome.» Outro buraco. Emergem alguns fragmentos não utilizáveis, «…Amor por filho jovem, pai idoso, jurado amor de esposo que a Penélope o coração de gáudio preenchia…» será mesmo exacto?

 … Ao mar, pois, eu me fiz, mar alto aberto.

Disto sim, disto estou certo, estou em condições de explicar ao Pikolo, de discriminar por que é que «eu me fiz» não é «je me mis», é muito mais forte e audacioso, é uma corrente quebrada, é atirar-se a si próprio para além de uma barreira, nós conhecemos bem este impulso. O mar aberto: Pikolo viajou pelos mares e sabe o que significa, é quando o horizonte se fecha sobre si mesmo, livre, direito e simples, e só permanece o cheiro do mar: coisas doces ferozmente longínquas (…)

«Mar aberto.» «Mar aberto.» Sei que liga com «… dessa companha escoltado que nunca ao meu destino me largara», mas já não me lembro se vem antes ou depois. E também a viagem, a viagem temerária para além das colunas de Hércules, que tristeza, sou obrigado a ter de a contar em prosa: um sacrilégio. Apenas salvei um verso, mas vale a pena meditá-lo:

… Não fosse alguém tal arraia transpor 


«Transpor»: tinha de vir para o Lager para me aperceber de que «transpor» está relacionado com a expressão anterior, «eu me fiz». Mas não o revelo a Jean, não tenho a certeza de que se trate de uma observação importante. Quantas coisas mais haveria a dizer, mas o Sol já está alto, o meio-dia está próximo. Tenho pressa, uma pressa furibunda. Atenção agora, Pikolo, abre os ouvidos e a mente, preciso que entendas:

De vossa origem meditai n`altura
Que vos impede a vida como brutos
Mas por saber, por bem, sempre exaltada

Como se eu também o ouvisse pela primeira vez: como um tocar de trompete, como a voz de Deus. Por um momento, esqueci-me de quem sou e onde estou. Pikolo pede-me para repetir. Como é bom Pikolo, apercebeu-se de que está a fazer-me bem. Ou talvez seja mais; talvez, apesar da tradução superficial e do comentário primário e apressado, tenha recebido a mensagem, tenha sentido que diz respeito a todos os homens atormentados e a nós especialmente; e que diz respeito a nós dois, que ousamos raciocinar disto (…)

Os ânimos tão fortes eu excitei…

… e esforço-me, mas em vão, por explicar quantas coisas significa este «excitei». Aqui mais uma lacuna, desta vez irreparável. «… A Lua ao dia a luz já consentia» ou algo parecido, mas antes… Nenhuma ideia (…). Pikolo tem de me desculpar, esqueci-me de pelo menos quatro tercetos

… Quando distante vimos, nebulosa,
Isolada montanha que julguei
Das altas a mais alta que então vira.

Assim mesmo, não «muito alta», «das altas a mais alta» grau superlativo. E as montanhas, quando se vêem de longe… as montanhas… oh, Pikolo, Pikolo, diz qualquer coisa, fala, não me deixes pensar nas minhas montanhas, que apareciam no lusco-fusco ao anoitecer quando regressava de comboio de Milão a Turim! Chega, é preciso ir para a frente, essas coisas que se pensam mas não se dizem Pikolo espera e olha para mim.
Dava a minha sopa de hoje para saber ligar «a mais alta que então vira» com o final. Esforço-me por reconstruir através das rimas, fecho os olhos, mordo os dedos: mas não serve, o resto é silêncio. Dançam na minha cabeça outros versos: «… e a terra só de lágrimas foi vento…», não, é outra coisa. É tarde, chegámos à cozinha é preciso concluir:

Três vezes na voragem o voltou;
A quarta, como de Alguém foi desejo.
Ergueu-se a popa e se abismou a proa…

Detenho Pikolo, é absolutamente necessário e urgente que oiça, que entenda este «como Alguém foi desejo», antes que seja demasiado tarde, amanhã ele ou eu podemos estar mortos, ou nunca mais voltar a ver-nos, tenho de lhe dizer, explicar-lhe que a Idade Média, o tão humano, necessário e porém inesperado anacronismo, e outras coisas mais, algo de gigantesco que eu próprio só agora vi, na intuição de um instante, talvez o porquê do nosso destino, do nosso estar aqui hoje…”.
http://dererummundi.blogspot.com.br/2007/04/no-dia-em-que-primo-levi-se-recordou-do.html  Levi, P. (2002) Se isto é um homem. Lisboa: Público (Colecção Mil Folhas), 123-127.

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Por uma ética da leitura/ per un´ etica della lettura

POR UMA ÉTICA DA LEITURA

Ética da leitura quer indicar uma ética não normativa,não ligada ao comportamento, a regras, a normas, a leis. Não ligada à Ética a Nicomaco de Aristóteles.
Ética da leitura quer sugerir uma ética que reflete principalmente sobre a leitura. Sobre a escrita (alfabética) e seus efeitos sobre os modelços de pensamento, sobre perspectiva.
Ética da leitura é o título de um ensaio de Hillis Miller, escritor e ensaista norteamericano.
Se há uma ética da leitura, ela está ligada à tradição judaica a transcrição de Decálogo (que Deus ditou e Moisés escreveu ou que Deus escreveu e entregou a Moisés). Aênfase na importância da escrita, faz com que a escrita alfabética se torna uma alavanca para transfromar o mundo. Força de um texto, narrativa decisiva, construção de um mito, que se torna chave de leitura. .
Na tradição ocidental há duas vertentes: uma grega ou gréco-cristã e uma judaica. Elas formulara duas visões sobre a origem da escrita, duas visões sobre a ética.
por isso: ética da leitura.

2009
Por uma ética da leitura Esse é o título do Blog e gostaria de explicar meu objetivo.A palavra ética está ligada, em nossa tradição, principalmente ao comportamento ou à finalidade da existência: à nossa experiência de vida.Uma reflexão sobre a leitura (e o texto), sua tradição, seus modelos e uma atenção às práticas de leitura contemporâneas mostram que um estudo das características e idiossincrasias da leitura em si é muito mais indicada para quem trabalha com os textos e tem como objetivo uma leitura mais aprofundada, que seja ou não profissional.A leitura é um procedimento que impôe, em princípio, ao leitor uma escolha: entre o texto que acaba de ler, com suas próprias tradições de leitura ("canônicas") e uma nova interpretação que o leitor deverá criar. Uma nova leitura corresponde a um procedimento indispensável. Para garantir uma escolha de liberdade, que se reflete sobre o leitor e a própria abertura para leituras posteriores. Andrea Lombardi (texto provisório)

Postado por testi/ textos às 12:27 0 comentários Links para esta postagem

Questo è il titolo del Blog e vorrei spiegare il mio obiettivo.La parola etica è legata, nella nostra tradizione, principalmente al comportamento o alla finalità dell´esistenza: alla nostra esperienza di vita. Una riflessione sulla lettura (e sul testo), la sua tradizione, i suoi modelli e un´attenzione alle pratiche di lettura contemporanee, mostrando caratteristiche e idiosincrasie della lettura in sé, è molto piú indicato per chi lavora con il testo e ha come obiettivo una lettura più approfondita, che sia o no professionale. La lettura è un procedimento che impone, in principio, al lettore una scelta: tra il testo che ha appena letto, con le sue proprie tradizioni di lettura ("canoniche") e una nuova interpretazione che il lettore dovrà creare. La creazione di una nuova interpretazione è un procedimento indispensabile, per garantire una scelta di libertà, che si riflette su noi come lettori e sulla stessa apertura a letture posteriori. Andrea Lombardi.

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Sou docente de literatura italiana na UFRJ. Nasci em Roma e moro e trabalho no Brasil desde 1982.)á

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Docente de língua e literatura italiana da UFRJ
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