domingo, 4 de março de 2012

Goya, entre sonho e sono: um problema de leitura

El sueño de la razon produz monstros
O sonho/ sono  da razão produz monstros
                     

                                                                       La fantasía abandonada de la razón produce monstruos imposibles:
unida con ella es madre de las artes y origen de las maravillas
Goya

Um homem desfalecido, dobrado em cima de uma mesa está em primeiro plano da imagem. Numa parede da mesa, em que se apóia, está inscrita a frase que é o título desse Capricho de Goya, o 43. de 80, que ele terminou em 1799, na véspera do século novo. O homem esconde sua cabeça entre os braços, pode estar em soluços. Sua vestimenta é longa e elegante, de um representante da aristocracia ou da burguesia. Ele está fortemente iluminado, como se estivesse no palco; atrás dele, ainda iluminada, um grande passaro, talvez uma coruja, com suas asas abertas; à esquerda e à direita mais corujas e em baixo, atento, um gato enorme, ou uma lince. Em segundo plano animais estranhos, sorrateiros e noturnos. Monstros somente esboçados, na semi-obscuridão: provavelmente morcegos, mas os contornos não são claros. A imagem provoca compaixão em relação ao homem, esgotado e deprimido. Os olhares fixos e alucinados dos animais transmitem espanto, mas também uma atmosfera de delírio misturado a temor ou terror. Um pesadelo: um peso excessivo esmaga o homem, como por pressão de um conjunto de criações do sonho, que não podem ser detidas.
Na água-forte realiza-se uma dupla cena, um duplo triângulo retângulo, um iluminado e outro obscuro e os dois completam uma figura que forma quase um quadrado: o homem completamente esgotado, tremendamente cansado ou fortemente deprimido, encolhe-se completamente, num afastamento completo do mundo que o cerca. Ele não percebe os inúmeros bichos que o fixam com um olhar curioso e pouco comum e que criam uma atmosfera alucinada e hostil ao mesmo tempo. O homem  enterra sua cabeça em seus braços, definitivamente perdido, antecipando a total prostração do homem deseperado de um desenho de Franz Kafka. Os bichos são, ao mesmo tempo, produtos de sua imaginação e seu íncubo, pois o próprio título declara que “El sueño de la razón produce monstros”. O  íncubo, representado pelos animais mitológicos ou  demoníacos, pressiona o inconsciente do protagonista. E há o aspecto contraditório da criação ou criatividade (produz), que antecipa os monstros da cultura ou civilização. Sabemos que o homem retratado é o próprio autor, que não  mostra o próprio rosto. Mas no Capricho n. 1, programática, há uma apresentação de Goya, em trajes elegantes, olhar irônico e desdenhoso. O  Capricho n. 43, uma forma de espelho, praticamente no meio da série de 80 Caprichos.

Há, finalmente, o problema - crucial - da tradução da palavra sueño (El sueño de la razon produz monstros), pois em espanhol sueño traduz-se “sono”. Algumas  traduções em várias línguas optaram por traduzir sueño por “sono”: por ex. em italiano “Il sonno della ragione”, em inglês “The Sleep of Reason Produces Monsters” e em francês, Le sommeil de la raison produit des monstre. Em alemão mais a opção Traum sonho, em e em português as duas opções. Nos desenhos  preparatórios aos Caprichos, Goya tinha usado a palavra sueño: “O autor sonhando. Sua única tentativa banir prejudicial vulgar e perpetuar com esta obra de caprichos o testemunho sólido verdad. Deve-se traduzir, portanto, o sonho da razão ... ou o sono  da razão, ou algo ... entre as duas?  A ambigüidade é ... muito produtiva!

Um comentário:

  1. El sueño de la razon não seria algo tipo sonho lucido? Assim ele estaria produzindo sua arte com a mente consciente em um ambiente totalmente moldado por ele...

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